A MENTE E O CORAÇÃO - HAZRAT INAYAT KHAN

A MENTE E O CORAÇÃO - HAZRAT INAYAT KHAN

Pensamento, memória, vontade e razão juntamente com o ego que é o quinto e principal fator, constituem o coração. São essas cinco coisas que podem ser chamadas de coração, porém ao nomear definidamente as diferentes partes desse coração, chamamos a superfície de mente e a profundeza dele de coração.
Se imaginarmos esse coração com sendo uma lanterna, a luz na lanterna transforma-o no espírito. Chamamos o coração de lanterna quando não pensamos na luz, mas quando há uma luz, esquecemos, então, a palavra lanterna e chamamo-la luz. Quando chamamos o coração de espírito, não significa espírito desprovido de coração, assim como não significa luz sem a lanterna, mas sim luz na lanterna.
O uso correto da palavra espírito, entretanto, é apenas como a essência de todas as coisas. A luz e vida essencial da qual tudo surgiu – isso é o espírito. Mas usamos a palavra espírito também em um sentido limitado, assim como a luz é a luz do sol que permeia tudo e ao mesmo tempo é a luz da lanterna – que chamamos de luz também.
As pessoas chamam uma parte do peito de coração. A razão é que há uma parte deste corpo de carne que é mais sensível ao sentimento e naturalmente – como o homem não consegue capturar a idéia de um coração fora do corpo – ele concebe a idéia do coração ser uma parte de seu corpo físico.
O ego permanece aparte das quatro faculdades de pensamento, memória, vontade e razão. É assim como os quatro dedos e o polegar. Por que o polegar não é chamado de dedo?* Porque o polegar é a mão toda. Esses quatro são faculdades, mas o ego é uma realidade. Ele contém e acomoda dentro de si as quatro faculdades e para distinguí-lo como diferente delas chamamo-lo de ego.
Assim como a superfície do coração é conhecida como sendo a imaginação e o pensamento, a profundeza da mente, que é o coração, é conhecida como sendo sentimento.
A diferença entre pensamento e imaginação é que a imaginação é um funcionamento automático da mente. Se a mente é sutil há uma imaginação refinada, se a mente é grosseira há uma imaginação grosseira, se há uma mentalidade bela, a imaginação é bela. Pensamento também é imaginação, mas imaginação dirigida, controlada e direcionada pela vontade. Portanto quando dizemos: 'Ele é uma pessoa pensativa (profunda – 'thoughtful')', significa que essa pessoa não pensa, fala ou age por impulso, mas por trás de tudo que ela faz existe força de vontade que controla e dirige a ação de sua mente.
Existem nove sentimentos principais que podem ser distinguidos como alegria, tristeza, raiva, paixão, simpatia, apego, medo, espanto e indiferença. Os sentimentos não podem ser limitados a esses nove, mas quando distinguimos sentimentos numerosos podemos reduzí-los a esses nove sentimentos distintos que experimentamos na vida.
Existem seis doenças que pertencem ao coração: paixão, raiva, entusiasmo excessivo que absorve a pessoa, presunção, ciúmes e cobiça.
Quanto mais pensarmos nesse assunto do coração, mais descobriremos que se há algo que pode nos falar sobre nossa personalidade, é o coração. Se há algo através do qual sentimos a nós mesmos e conhecemos a nós mesmos – sabemos o que somos – é o coração e o que nosso coração contém. Uma vez que a pessoa entenda a natureza, o caráter e o mistério do coração ela entende, por assim dizer, a linguagem de todo universo.
Existem três formas de percepção. Uma forma de percepção pertence à superfície, à mente. É o pensamento. O pensamento manifesta-se à nossa mente com forma, linha e cor definidas.
A próxima forma de percepção é o sentimento. É sentida por uma parte bem diferente do coração, é sentida pela profundeza do coração, não pela superfície. Quanto mais a qualidade do coração é despertada numa pessoa, mais ela percebe os sentimentos dos outros. Essa pessoa é sensitiva, porque para ela os pensamentos e sentimentos das outras pessoas são claros. Aquele que vive na superfície não percebe os sentimentos claramente. Também, existe uma diferença entre a evolução dos dois: daquele que vive na superfície do coração e do outro que vive na profundeza. Em outras palavras, um vive em sua mente e o outro vive em seu coração.
Há ainda uma terceira forma de percepção, que não é nem mesmo através do sentimento e que pode ser chamada de uma linguagem espiritual. Essa percepção vem do âmago mais profundo do coração. É a voz do espírito. Ela não pertence à lanterna, pertence à luz – mas na lanterna ela se torna mais clara e mais distinta. Essa percepção pode ser chamada de intuição, por falta de um nome melhor para ela.
Para estudar a vida totalmente, essas três percepções devem ser desenvolvidas. Apenas assim a pessoa fica apta a estudar plenamente a vida e é ao estudar totalmente a vida que nos capacitamos a formar um julgamento a respeito dela.
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Pergunta: Você poderia explicar melhor como a mente é a superfície do coração e o coração é a profundeza da mente?
Inayat: Existem cinco dedos, mas uma só mão, existem vários órgãos do corpo mas um só corpo, e existe um universo cheio de variedades mas um Espírito. Portanto, existe um coração que sente as várias imaginações e pensamentos que emergem e submergem nele. As bolhas são encontradas na superfície do oceano. A profundeza do oceano está livre de bolhas. A comoção é vista na superfície, a profundeza do oceano é quieta. A mente é a comoção daquele algo que está dentro de nós, aquele algo que chamamos de coração.

A felicidade, o conhecimento, o prazer, o amor que estão guardados no nosso ser mais íntimo, estão no fundo de nossa profundeza, as emoções e paixões mutáveis, os sonhos, pensamentos e imaginações que surgem incessantemente pertencem todos à superfície, assim como as bolhas pertencem à superfície do oceano.

P: Podemos dizer que o coração está mais próximo da alma e a mente mais próxima do corpo?

I: Sim, de certa maneira. Mas ao mesmo tempo a alma experimenta através do Ser todo: por meio do corpo, da mente, do coração, uma vez que ele está em diferentes planos de existência.
P: O coração é um dos corpos da alma?

I: Certamente. O coração é um dos corpos da alma, o corpo mais fino. Ele segue um longo caminho com a alma, mesmo na jornada de retorno dela.
P: É por isso que os Católicos têm uma devoção especial pelo Sagrado Coração de Jesus?

I: É claro. O coração é o santuário de Deus. Se há algum lugar onde Deus pode ser encontrado, é no coração do homem, especialmente no coração daquele homem no qual Deus se manifesta.
P: O coração é o lar da alma?

I: Sim, podemos chamar o coração de um lar da alma, mas eu chamaria de um hotel temporário.

P: O mundo dos sentimentos é superior ao mundo dos pensamentos?

I: Sim.
P: O que é indiferença?
I: Essa é uma palavra que eu sempre acho difícil de explicar, e eu já deixei muitas pessoas bravas ao falar sobre indiferença, pois elas dizem: 'Onde está o amor que você veio pregar para nós? A indiferença é bem diferente do amor, da mensagem, do ensinamento.' E quando as pessoas lêem no Budismo e Yoguismo sobre renúncia, nirvana, vairagia – que em termos Sufi dos poetas persas chama-se fana – elas começam a se perguntar: 'Eles todos ensinam a tornarmo-nos indiferentes, eles ensinaram tal crueldade?' Mas na realidade é uma coisa bem diferente. Indiferença não é ausência de amor nem é falta de simpatia. Indiferença é muito útil no momento que a alma chegou numa sensitividade onde qualquer pequena coisa machuca. Então é apenas a indiferença que a mantém viva.

Você pode dizer que não é bom ser sensitivo. Sim, mas sem ser sensitivo você não pode evoluir. Sensitividade é um sinal de evolução. Se você não é sensitivo você não pode sentir-se compassivo em relação a seus semelhantes. Se você não sente os sentimentos de seus semelhantes, então você ainda não está desperto para a vida. Portanto, para tornar-se um ser humano normal é necessário desenvolver a sensitividade, ou pelo menos chegar à sensitividade. E quando você é sensitivo, a vida torna-se difícil de ser vivida. Quanto mais sensitivo você é, mais espinhos você vai encontrar em seu caminho. Cada movimento que você faz, a cada volta, a cada passo há algo para lhe machucar. É apenas um espírito que você tem de desenvolver, e é o espírito da indiferença - ainda assim não abandonando o amor e a compaixão que você tem pelo outro: essa é a correta indiferença. Dizer para uma pessoa: 'Eu não ligo para você porque você foi imprudente', não é o tipo certo de indiferença, essa não é a indiferença que os místicos relatam como vairagia. A indiferença mística é aquela na qual a alma retém a compaixão e o amor, mesmo diante das atitudes irrefletidas de uma pessoa e expressa isso sob forma de perdão. Na Bíblia lemos as palavras de Cristo: “Ofereça o outro lado de sua face se a pessoa lhe bateu nesse lado'. O que mais pode ser isso senão uma lição de indiferença? Como pode uma pessoa sensitiva, uma pessoa de sentimento, uma pessoa espiritual e de coração terno viver neste mundo, se ela não for indiferente? Ela não poderia viver aqui nem por um momento! Apenas essa única coisa pode protegê-lo das contínuas influências que jorram de todos os lados.

P: Por que não chamar isso de desapego?

I: Desapego na verdade não é palavra certa. Não podemos ser desapegados, nunca estamos desapegados (desconectados daquilo que nos cerca). A vida é una e nada pode separá-la. O desapego é apenas um aspecto ilusório da vida. Na verdade não existe tal coisa como o desapego. Como pode haver o desapego sendo a vida una! Frequentemente, para tornar mais claro tenho dito: 'indiferença e independência': dois significados dessa única palavra vairagia. Indiferença explica esse conceito apenas pela metade.

*Em inglês, o polegar não é chamado como os outros dedos de 'finger', mas sim de 'thumb' e expressa a força da mão toda.

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